Estranhamente familiar
O que interessa ao historiador do cotidiano é o invisível. Não exatamente o invisível, mas aquilo que quase não se vê por ser tão minúsculo, aparentemente insignificante ou completamente imantado em ações praticadas por todos, dia após dia. Nessa repetição ritmada do cotidiano, e paralelamente à cronologia irrefreável do passar dos anos que parece tudo envelhecer, há um tempo partilhado, o tempo comum das pequenas histórias que a todos se destina e em todos se reedita, tempo que nos enlaça através de atos reincidentes que têm a curiosa característica de serem singulares cada vez que ocorrem.
Se, por um lado, o historiador do cotidiano abandona a primazia das estatísticas e estuda certas práticas na microscopia das horas diárias, investigando “as operações e os usos individuais, suas ligações e as trajetórias variáveis dos praticantes”
Familiaridade e estranheza, repetição e singularidade, mecânica e descoberta, banalidade e preciosidade parecem ser palavras parceiras que atuam, juntas e intertensionadas, na exposição Lição de coisas, de Nydia Negromonte. Como indica o nome escolhido para reunir o conjunto das obras expostas, temos o protagonismo das coisas ordinárias, dos elementos domésticos, dos materiais disponíveis para construção civil e das técnicas comuns de assepsia diária da casa, do corpo e da paisagem exterior, coisas que pretendem, numa revolução pedagógica despretensiosa, nos ensinar o estranhamento.
O termo “lições de coisas”, popularizado em Paris no século XIX, propunha um método de ensino intuitivo no qual as coisas (os fatos e os objetos) vinham antes das palavras. Observar significava ir da percepção para a ideia, dos sentidos para a inteligência, dos dados para o julgamento, do concreto para o abstrato. Esse método de ensino para professores e alunos produziu conjuntos de ilustrações que foram publicados, naquela ocasião, em manuais enciclopédicos de encenação de atividades concretas da vida.
Lição de coisas é também o título da série que constrói, numa mesma estrutura emoldurada, duplas híbridas de fotografa e gravura. A série é construída a partir do arquivo pessoal de fotografas da artista e das ilustrações reproduzidas de um dos manuais “Lições de coisas”, comprado por ela em um sebo de Barcelona, Espanha, há cerca de 15 anos. Frente à nova conjuntura dessas imagens parceiras, tal acoplamento nos diz muito sobre o trânsito entre a experiência particular e o saber comum e, também, sobre a relação entre as estratégias nada inocentes de educação e a estratifcação da sociedade moderna. Somos posicionados como livres observadores na fronteira entre o álbum folheado na sala de visitas e o espaço de estudo multidisciplinar da biblioteca.
Nydia Negromonte apresenta formalizações para a experimentação do tempo comum cotidiano tão caro àqueles historiadores da segunda metade do século XX interessados na ideia de uma microhistória em contraponto à história ofcial. O processo de invenção do documento histórico, momento em que o historiador produz seu material com critérios próprios de pertinência e seriação, é colocado em evidência criativa pela artista. Se podemos argumentar que todo documento tem certo poder fabulador e que, do mesmo modo, a historiografa é sobretudo uma escrita possível da história, percebemos que de fato é preciso fazer os arquivos fabularem e que são muitas as estratégias – sejam científcas ou poéticas – empregadas para tal fim.
Esse ato que reincide em cada um de nós – ato de colecionar, selecionar, recordar, recontar – nos aproxima da prática cultural da formação de arquivos. O tempo de arquivo é uma heterocronia em cuja plataforma podemos circular, experimentando simultaneamente a nostalgia e a prospecção, a familiaridade e o estranhamento. Aqui, essa plataforma é uma espécie de livro aberto que, na série de imagens parceiras, é despedaçado para se recompor em lâminas regravadas e servir ao jogo das coincidências vividas e à projeção coletiva de microhistoriografas.
Ao mesmo tempo que encontramos na exposição sinais de procedimentos arquivistas usuais na prática artística contemporânea, temos também o imaginário da feira bricabraque, composta de objetos perdidos ou abandonados do cotidiano – ou ainda, de modo inverso, objetos-vestígio de um cotidiano perdido – que são postos à imprevista circulação do mercado de segunda mão. Tanto o livro comprado em Barcelona como as fotografas e objetos recolhidos pela artista são propulsores de novas experiências oferecidas a inesperados donos de afazeres e objetos antigos que executam um cotidiano de segunda mão: ver de novo, recolher de novo, abrir e fechar de novo, reembalar. A força da segunda vez que, ao invés de ser mera repetição do mesmo, apresenta-se como inauguração de um ato inédito.
Mercado Livre, obra em que Nydia instala na mureta do piso térreo do Museu 15 azulejos de mesma época e desenho dos que compõem a fachada externa, achados e adquiridos no mercado livre, trata da formação de um arquivo novo. Em estreito diálogo negociante segundo os trâmites do mercado livre, popular website de compra e venda – ele mesmo um arquivo fuido de quase tudo, pulsante de acordo com as forças do mercado e os seus nichos – a obra Mercado Livre expande a ideia de arquivo e conecta a institucionalidade do edifício do Museu à domesticidade de outros edifícios que receberam o mesmo revestimento ainda na década de 1940. Nydia empreende uma pesquisa minuciosa e produz o rastreamento do uso do mesmo azulejo em outras edifcações na cidade de Belo Horizonte: casa de baile, residência, hospital, clube, arranha-céu. E, como é costumeiro em toda pesquisa intensa, acaba-se encontrando o não procurado: um azulejo português similar é descoberto por ela na Igreja da Lapa do Desterro, no Rio de Janeiro, datando do século XIX. O trabalho, além de assentar os azulejos comprados pela internet na mureta interna do Museu na posição correspondente à sua falha, quebra ou ausência total da peça no exterior, produziu um livreto com imagens dos edifícios que compartilham ou compatilharam do mesmo azulejo. Original e cópia, colonização e intercâmbio são postos à comunicação no processo de reinvenção fabuladora do documento histórico.
Ali ao lado, em coordenadas vizinhas tanto a Mercado Livre como às três portas abertas do Museu por onde escorrem seis mangueiras, temos alguns pontos episódicos do sistema espacial que compõe o trabalho Hídrica: Episódios. A água que percorre o espaço e dá vida ao Hídrica: Episódios é proveniente da caixa d’água situada na laje do Museu, que chega ao Salão através de um “gato hidráulico”. Essa instalação planejadamente improvisada desvia, como um dique no curso de um rio, o fuxo de água que seguia em direção à parede de espelho, que guarda a localização dos banheiros. A água do Museu na sua versão superexposta passeia solta e aérea no espaço. Podemos beber água, molhar as mãos, tomar uma ducha,disparar descargas e aguar o jardim, atividades mais ou menos familiares ao âmbito da intimidade que agora se reapresentam estranhamente superexpostas.
O espírito domiciliar renovado não se coloca sem ambiguidade: estamos dentro de casa mas também fora (no Museu), expostos ao olhar institucional que tudo parece solenizar. Azulejos, ducha, tanques, mangueiras, filtros e descargas são elementos familiares à vida prática da casa, da cozinha, do banheiro, do jardim ou da jardineira – dos serviços domésticos automáticos; são encenações de hábitos particulares deslocados para o fórum público. Encenações que têm como fundo uma descomunal cortina vermelha de veludo que cega o espelho do imponente edifício de vocação exibicionista, antigo Cassino. O Museu superexposto é visualmente confnado pela obra Espelho Cego. Afinal onde estamos?
A casa (Museu) parece tomada como no conto de Julio Cortázar. No conto escrito em 1946, Casa Tomada, o autor narra a invasão gradativa de uma casa por acontecimentos misteriosos. A invasão é percebida através de sons anônimos que ocupam a casa, cômodo por cômodo, encurralando os irmãos que lá moravam e conduzindo-os em fuga lenta para a rua. O ambiente familiar, confortável, supostamente seguro e estável da casa é subitamente habitado por forças exteriores – que no conto não fcam explícitas de onde vêm e nem a que vêm. Expelidos do imóvel, os irmãos trancam a casa tomada e jogam a chave no bueiro.
“— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.
— Não, nada. Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde. Como ainda fcara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.”
A força da estranheza do desconhecido invade a casa e torna inviável a antiga vida que tinha lugar ali. O Museu (casa) também é tomado por uma fuidez de nova ordem. Casa própria e Museu apropriado são dois lugares conectados pelo fuxo da água que, na ausência de paredes e amplifcando a transparência existente, corre feito desenho pelos ares. A materialização de coordenadas no espaço do papel poderia servir para defnir o que é desenho mas, nesse trabalho, a precisão da linha sai do suporte bidimensional e acomoda-se no edifício traçando rumos no espaço. No percurso aquífero de Hídrica: Episódios, a obra se espacializa como um desenho de canos de autoria mista: metade projeto de instalação hidráulica desnuda, metade intenção de instalação artística.
O vídeo Poda também é sobre desenho: instalado no Mezanino, registra uma ação feita em 2004 que opera o redesenho de árvores que, podadas irregular e seguidamente por órgãos entendidos como competentes, lutam por encontrar seu novo equilíbrio de crescimento em natureza urbana tão adversa. O que podemos esperar desse jogo de assepsia brutal da paisagem?
Os murmúrios das pinguelas cotidianas são ouvidos também em outras propostas formais apresentadas pela artista. Posta e Barrado são dois trabalhos vizinhos que, aplicando o hábito da artesania do revestimento, caro ao cotidiano asséptico da casa, articulam o familiar e o estranho. Posta é uma mesa repleta de frutas e legumes revestidos com barro cru, o que dá início a um processo que abre mão de toda ordem compositiva. Reembalando os vegetais, um a um, com uma camada de barro que acompanha o seu volume, os novos objetos travam uma dinâmica de interação no esforço biológico de reprodução através dessa nova superfície de mediação com o mundo exterior. Um conjunto de temporalidades distintas dá-se à descoberta ao longo do período da exposição: brotos exuberantes, raízes aéreas, fungos, rachaduras e desidratações podem ser notados em contínuo processo, enquanto novas remessas de vegetais reembalados chegam e substituem aqueles perecidos.
Barrado, feito com finos quadrados de barro cru, constrói na parede um barrado correspondente à área impermeabilizada da casa. Com o tempo, os azulejos de barro vão secando e caindo no chão, levando consigo camadas históricas da única parede de alvenaria do Museu, onde foi incluída uma fotografa de paisagem de uma salina peruana em diálogo direto com a Lagoa logo ali, através da janela. Outro embaralhamento é oferecido com a obra Nota de Prova, que, juntando artesania, hábito alimentar e educação culta, justapõe embalagens de hortaliças frescas, textos descritivos de provas de vinho e serigrafa in loco e just in time. Na manhã de inauguração da exposição, ocorreu uma ação na qual a prática serigráfca de “notas de prova” de vinhos em cápsulas plásticas de hortaliças foi oferecida aos visitantes como portatibilidade do estranhamente familiar.
No Mezanino enxergamos o “gato” feito na vidraça modernista. A casa tomada acolhe o fuxo da caixa d’água e esse fuxo pode vir a retornar à Lagoa, depois de utilizado, através dos esgotos da Região Metropolitana. Duas imagens, Museu e Lagoa, se justapõem na difícil coincidência do uso/reúso, fartura/escassez, consumo/desperdício, esgoto/ paisagem. Ilha dos Amores, vídeoinstalação no Auditório, foi produzido durante cinco expedições realizadas pela artista na Lagoa da Pampulha, em dias e horários diferentes, preferencialmente no início da manhã e fnal da tarde. Constituindo uma prática artística na fronteira entre a observação artística e a observação científca, Ilha dos Amores reconta a história da Ilha, lugar integrante da euforia otimista do Modernismo brasileiro no planejamento da região da Pampulha como lazer e descanso. O vídeo, composto por três sequências simultâneas (a ilha, a água e os animais), trava um dramático encontro com os seus habitantes atuais: pássaros de muitos tipos que sobrevivem à água quase-sólida feita dos rejeitos das redondezas. É preservado o olhar sublime e o tempo lento dos bichos que modulam a paisagem capturada e exposta frente ao seu duplo platônico: o vídeo inodoro e a bela vista através das janelas panorâmicas.
A imagem do bueiro para onde é lançada a chave da casa tomada do conto de Cortázar revela-se como sintomática. Por um lado, é o imaginário de declaração do fm das coisas, a submissão ao fuxo inexorável da água do mundo que tudo carrega, irremissível; é a condenação dos objetos sujeitos a esse fuxo incontrolável. Mas se trata do imaginário obsoleto do “sem retorno”. O bueiro da calçada leva a um lugar que supostamente não existe, um submundo negligenciado que, em condições extremas de acúmulo, pode pôr a perder o cartão-postal modernista.
A fotografa que compõe a obra Escalera mira, discretamente, a escada do Auditório. Instalada no corredor de vidro adjacente, traz a imagem de uma escada também modernista que se supõe ser do engenheiro e arquiteto uruguaio Eladio Dieste (Montevideo, 1917-2000). O novo documento histórico inventado faz transitar o documento fotográfico no espaço-tempo. Embaralha, redistribui, faz dialogar. A assepsia e o cuidado da casa são aplicados à escada do Museu: seu corrimão de latão dourado foi recém-lustrado como parte integrante de Escalera. Nydia não pretende fazer alusão direta a um tempo e lugar determinados, mas utilizar parâmetros concretos para transmitir noções de história, experiência e os dilemas de seu armazenamento. Mais uma vez, como na série Lição de coisas, álbum pessoal e documento histórico embaralham-se trocando de papéis e revelando a subjetividade mesma da historiografa.
No exterior do jardim, ao redor da Lagoa, árvores também são revestidas: sacos plásticos emolduram galhos promovendo a observação de sua interioridade invisível. Em Coletores, a água interna que fui nas árvores é desviada e reservada no fundo de sacos plásticos transparentes que envolvem os galhos e tornam visível o imperceptível. “O estudo do rompimento e rejeição do cotidiano por parte de grupos ou indivíduos desviantes ajuda-nos a iluminar, como casos limites, a rotina e os mecanismos de conservação e dominação existentes” . Lição de coisas nos oferece um manual tático para o cultivo de desvios cotidianos no qual sujeito pesquisador (antropólogo, historiador, artista ou visitante?), sujeito pesquisado (antropólogo, historiador, artista ou visitante?) e objeto estudado (casa ou museu, natureza ou cultura?) se confundem em intercâmbio.