O tempo das coisas em Posta, de Nydia Negromonte

Resumo: Posta, de Nydia Negromonte, inspi­ra, neste texto, discussões relacionadas à du­ração das coisas e ao processo de descrição de elementos perecíveis. Partindo deste trabalho, a natureza-morta é abordada por meio de provocações sobre a sua presença nas produções artísticas contemporâneas, perpassando, brevemente, por seus temas e conceitos. Por fim, faz-se um convite aos ar­tistas para experienciar os subtemas e ferra­mentas da natureza-morta.

Palavras chave: natureza-morta / Nydia Negromonte / arte contemporânea.

 

Introdução

O objeto mesa contém uma superfície que nos convida a observar o que está sobre ela e ao seu redor. Na obra Posta, de Nydia Negromonte, tal objeto oferece um suporte às formas encapadas de barro, nas quais percebemos brotos que escapam de uma espessa camada marrom acinzentada. São legumes e frutas que vão se finando pouco a pouco e, paradoxalmente, levantando brotos ver­des. Por lidar com objetos perecíveis, a obra se modifica com o decorrer da exposição. Em 2012, tive a oportunidade de experienciá-la em dois diferentes momentos, ambos no Brasil: nas primeiras semanas de exibição, no Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte e, nos últimos dias, na 30o Bienal de São Paulo. Estar diante da mesa de Posta acionou lembranças e conexões com a duração das coisas e, sobretudo, com a natureza-morta, e são a elas que recorro para este artigo.

Nos trabalhos recentes da artista, que mantém seu ateliê em Belo Horizonte, Brasil, percebemos que ela articula, com leveza, uma gama de materiais, entre eles a água, madeira, barro, papel e algodão, e de procedimentos artísticos como a gravura, fotografia, colagem, modelagem, ações performáticas e ins­talação. Ademais, notamos que os trabalhos aguçam as qualidades destes ele­mentos e técnicas, agregando seus inerentes gestos e conceitos.

A instalação Posta fez parte, em Belo Horizonte, da exposição intitulada Lição de coisas, o que remete propositadamente a manuais de conhecimentos gerais comuns no final do século XIX. Como explicitado no catálogo da expo­sição, a artista faz referência a um manual da década de 40, constituído por diversas ilustrações e frases curtas, que introduziam pequenos conhecimen­tos sobre as coisas ao nosso redor, tais como a eletricidade, objetos domésti­cos, situações diárias, vegetação, entre outros ( Negromonte, 2012 ). Apesar dos trabalhos desta exposição serem conectados entre si, a intenção deste artigo é remirar as questões que surgiram diante de Posta, entre elas o ato de observar e descrever.

1. Posta

Diante de Posta somos convidados a percorrer a estranha cena apresentada. Notamos que as diferentes formas embrulhadas no barro são volumes de ali­mentos presentes nas nossas cozinhas: bananas, carás, abóboras, batatas, melões etc. Ao lançarmos os olhos nestes volumes percebemos, então, que cores vivas escapam das rachaduras do barro. Elas são evidenciadas com o decorrer da exposição, quando os brotos dos tubérculos ousam atravessar a mesa a pro­cura de luz e as cascas coloridas das frutas se despregam do barro desidratado. Há uma progressiva desordem na cena monocromática inicial.

Durante a experiência da obra fiquei atraída pela situação paradoxal entre o que morria e vivia. Afinal, o que apodrecia estava, ao mesmo tempo, se transformando em evidência de matéria viva. E ela se apresentava colorida, contrastada com as cores acinzentadas do barro. Na ocasião lembro-me de ter associado os carás em processo de estiolamento, em que os brotos procuram uma área de luz, com a duração do meu corpo. Ali, estávamos no mesmo der-curso do tempo.

Durante uma conversa pública sobre a exposição, transcrita para o catá­logo (Negromonte, 2012), a curadora Renata Marquez revelou que, durante os meses de exibição, alguns alimentos podres foram substituídos por outros mais frescos, também embalados com barro. Tendo em vista esse fato, poderíamos pensar em quais foram os cuidados para a cena apresentada, para a realiza­ção dessa mesa posta. Foram elegidos os brotos, a matéria fresca e a planta em estiolamento, enquanto o podre foi descartado. Antes de fixar possíveis signi­ficados desta escolha, cabe uma reflexão sobre as ações presentes no montar uma cena, do cuidado de construir a composição para alguém – um espectador ou o próprio artista – observar. Mas, que ações há em Posta?

Para pensar uma das ações de Posta convido o leitor a uma breve volta pelo processo de outro artista, Giorgio Morandi. Como relata a pesquisadora Janet Abramowicz (2004), que conviveu com o artista italiano em seu ateliê em Bolonha, ele modificava os objetos utilitários para o seu processo de observa­ção. Ele formava uma camada fosca nas porcelanas ao aplicar tinta nas super­fícies externas delas. As jarras e potes, agora encapados, deixavam de ter seus funções nas tarefas diárias para serem vistos por olhos perscrutadores. Havia um zelo pelos objetos utilitários de sua coleção, os quais eram tocados apenas por ele. Durante a cena montada, as posições eram testadas, anotadas e revistas constantemente. Afinal, numa cena de natureza-morta sabemos que os espaços e os detalhes das formas dos objetos perecíveis ou utilitários são escolhas fun­damentais. Nessas minúcias há perguntas difusas.

Nos detalhes de Posta vemos rupturas, desprendimentos, transformações, desidratações, cores e brotos. A cena posta oferecida aos nossos olhos persiste em estar fixa e em transformação. Encapados, eles estão expostos para o tempo da descrição e da observação. Por meio da sugestão destas ações, somos convi­dados a nos desprendermos das tarefas urgentes para estar e ver o tempo das coisas, para ver detalhes. Neste tempo, pude sentir o escape da matéria viva no que perece. E, me parece que o trabalho realça – e oferece – a alegria sutil do rompimento e da perda.

2. A duração das coisas

Figura 1 ∙ Nydia Negromonte, Posta no Museu de Arte da Pampulha, 2012. Instalação. Fonte: Flávio Del Re.

 

Figura 2 ∙ Nydia Negromonte, Posta na Trigésima Bienal de São Paulo, 2012. Instalação. Fonte: Daniel Mansur

 

Figura 3 ∙ Nydia Negromonte, Posta na Trigésima Bienal de São Paulo, 2012. Instalação. Fonte: Daniel Mansur

Ao trazer as coisas inanimadas como protagonistas de nossos procedimentosartísticos e dos temas de pinturas, instalações, performances ou curadorias, nós artistas estamos lidando, possivelmente, com o assunto da natureza-morta. Tema que requisitou o campo do doméstico, mercados, feiras, arranjos de flo­res, assuntos insignificantes da vida comum, crânios, relógios, bolhas de sabão, chamas de velas, caça, tratados de alimentos, catálogo de frutas exóticas, ces­tas, doces e banquetes. Seu passado, um reino de devaneios (Skira, 1989:150), está marcado por catalogações hierárquicas, por alegorias religiosas e políticas e, também, por investigações sobre o ato de observar e descrever. A pesquisa sobre os gestos e os conceitos presentes na natureza-morta, que um dia foi con­siderado um gênero da pintura, nos permite perambular por um caminho labi­ríntico dos sentidos humanos e de suas preocupações existenciais.

Realizado em 2007, o trabalho Time after Time: Blow up No.8, de Ori Gersht, sugere um violento rompimento com a composição tradicional da natureza­-morta. Nele o artista remonta uma composição de flores baseada nos arran­jos do século XIX, de Henri Fantin-Latour, e capta 1/6000 de segundo da sua explosão. Em grande escala (250 x 183 cm) as porcelanas e pétalas de flores transformam-se em estilhaços no fundo preto. O tempo passivo da natureza­-morta é irrompido. Não é por acaso que este trabalho está na capa do livro Nature morte: contemporary artists reinvigorate the still life, de Michael Petry (2013), que compila produções artísticas contemporâneas que dialogam com o passado histórico da natureza-morta. A metáfora do trabalho de Ori Gersht é útil para pensarmos a presença da natureza-morta na contemporaneidade, após suas inflexões. Para essa reflexão, cabe a pergunta de como os seus frag­mentos estão presentes nas produções contemporâneas artísticas interessa­das no tempo das coias, na memória do doméstico, no tempo da descrição e da observação, no ato de ser hóspede e anfitrião e em outros temas presentes na natureza-morta.

Norman Bryson (1990) em seu estudo aprofundado sobre as interfaces da natureza-morta, introduz algumas noções e procedimentos típicos deste antigo gênero da pintura que nos auxiliam a compreender sua relevância nas práticas contemporâneas – quando, efetivamente, o gênero clássico já se implodiu. Dentre os diversos aspectos e subtemas discutidos, destaca-se a relação particular entre observador e coisas do mundo que Bryson identifica na natureza-morta. Para o autor, ela é algo que exibe o que é negligenciado, reforçando os seus detalhes:

It Attends to the world ignored by the human impulse to create greatness. Its assault on the prestige of the human subject is therefore conducted at a very deep level. The human figure, with all of its fascination, is expelled. Narrative – the drama of greatness – is banished. (…) The human subject that it proposes and assume is anonymous and creatural, cut off from splendour and from singularity. All men must eat, even the great; there is a levelling of humanity (…) (Bryson, 1990:61).

 

Figura 4 · Nydia Negromonte, Posta na Trigésima Bienal de São Paulo, 2012. Instalação. Fonte: Daniel Mansur

Conclusão

Posta, delicadamente, lembrou-me que o processo de perda é de renascimento e que é preciso produzir trincas. No convite ao tempo da descrição, diante da mesa posta, ela me soou como um vanitas invertido. Ao qual, além de ser um alerta de que todos iremos apodrecer (memento mori) ela sinaliza que haverá brotos. Sem ser literal (e com bastante frescor) o trabalho me levou à reflexões sobre temas da natureza-morta. Mas, para além disso, a experiência deste trabalho acionou o lugar do observador que vê detalhes e suas minúcias.

A provocação deste artigo, sobre a presença da natureza-morta no nosso tempo, não almeja a construção de uma definição, mas sim de nomear – ação tão própria da tradicional natureza-morta neerlandesa – alguns temas que são próprios dessa área de conhecimento. É um desafio ao artista de levantar assun­tos esquecidos do tema e se permitir a experenciá-los.

Se um dia a natureza-morta foi esquecida, o seu próprio conceito reafirma o seu ressurgimento: de que nada é estável e que haverá rompimento. Ao se deparar com uma cena posta, com seus gestos e perguntas difusas, percebe­mos que é, também, um olhar para um espelho. Este artigo, finalmente, con­vida as pessoas a imergir no imenso campo de conhecimento da natureza­-morta e, assim, enriquecer a experiência artística com suas ferramentas, abordagens, gestos e reflexões.

Referências

Abramowicz, Janet, e Giorgio Morandi (2004) Giorgio Morandi: the art of silence. New Haven, [Conn.] ; London: Yale University Press. ISBN 978-0-300-10036-5

Bryson, Norman (1990) Looking at the Overlooked: Four Essays on Still Life Painting. Essays in Art and Culture. London: Reaktion Books. ISBN: 9780948462061

Gersht, Ori (2007). Time after Time: Blow up No. 8 [Impressão lightjet montado em alumínio].

Negromonte, Nydia (2012) Lição de coisas – Nydia Negromonte. Organizado por Renata Marquez. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha. ISBN: 978-85-98964-09-6. [Consult. 2017-02­05]

Petry, Michael (2013) Nature morte: contemporary artists reinvigorate the still life. New York, NY: Thames & Hudson. ISBN: 978-0-500-23906-3

Skira, Pierre (1989) Still Life: A History. New York: Rizzoli. ISBN: 978-0-8478-1111-3
Volz, Jochen (2014) Natureza [Consult. 2017­02-08]

 

Escrito por Janaína Thaís Rodrigues Em 2012