Vegetação mnemotécnica
Quando olhamos para os trabalhos de Nydia Negromonte, identificamos logo um forte componente “natural”: água, frutas e legumes, argila e madeira. A pista ecológica se apresenta. Mas a análise exige esboçar outra sugestão: os trabalhos poderiam constituir uma contribuição específica à questão da natureza da arte, sua própria vegetação cultural…
Natureza/matéria
Até um tempo relativamente recente, a arte elaborava imagens da natureza. Pinturas ou gravuras representavam seus elementos primordiais, menos a matéria em si, mas, principalmente, as plantas, as árvores em floresta ou em bosques, os rios, as colinas e as montanhas, etc. Estruturavam o gênero da paisagem. Mas a paisagem constituía também o pano de fundo das narrativas históricas, mitológicas ou religiosas. As gravuras de Albrecht Dürer, por exemplo, são uma verdadeira festa paisagística. A paisagem, seja ela fantasiada, seja ela mais realista, sempre foi uma forma de conhecimento visual. Desde que os homens pintam o que veem e observam, a paisagem é objeto de uma construção do olhar – atenta, cuidadosa e, em grande parte, imaginária. A pintura de paisagem é um reflexo da visão da natureza. Essa afirmação pode ser aplicada legitimamente à representação das pinturas com os vegetais, as frutas, as plantas ou as carnes nas tradicionais “naturezas mortas” do século XVII. Da paisagem à “natureza morta”, à “vida silenciosa” (stilleben para os alemães), passamos do ambiente em escala maior ao ambiente em escala doméstica, do longínquo ao próximo, do horizonte ampliado à mesa cotidiana. É um pouco o que Nydia faz, mas em sentido inverso, quando passa do ateliê confidencial para as ações públicas, mas sem que essa passagem deixe de constituir, ao mesmo tempo, uma ampliação do horizonte através da mesa cotidiana… Seriam essas antigas oscilações entre polos espaciais extremos ainda possíveis hoje? Pode a arte contemporânea manter juntos horizontes afastados e proximidades íntimas? Faz sentido colocar o trabalho da Nydia em diálogo com essas perguntas?
Sem reinstituirmos uma poética de outros tempos, será que a “vida silenciosa” da natureza pode ainda determinar a legitimidade de uma criação? Essas perguntas não são gratuitas. Elas podem ser feitas por todo historiador da arte que não se esquece de que a passagem da arte “representativa” à arte dita “abstrata” aconteceu por meio de práticas artísticas cujo projeto fundamental era de aprofundar o conhecimento da natureza. A natureza impressionista ainda é a natureza das aparências; poderíamos pensar que a natureza cubista ou futurista é mais do que a natureza das aparências, contudo, ela o é ainda, mesmo que de forma diferente: abrir, explorar e representar o espectro cromático da luz ou abrir, explorar e representar o espectro anatômico dos corpos gera formas estéticas ainda determinadas pela observação e pela análise da natureza. E por mais que a pintura “abstrata” possa nos aparecer não natural, ela representa, apesar disso, uma proposta de conhecimento singularizado da natureza. Mondrian ou Kandinsky a consideravam em termos de símbolo cósmico. Assim, não se expulsa tão facilmente a natureza da arte. Hoje, o ambiente da vida que nos envolve tende a assumir aspectos críticos que eram anteriormente associados à “natureza”. Para o artista de nossa época, o termo “natureza” tem mais significações. Assimilada a um sistema, a arte viu-se convidada pelos artistas conceitualistas dos anos 1970 a se tornar uma prática de análise da “natureza da arte” (Joseph KOSUTH). Quanto à ideia de “natureza”, no sentido mais tradicional, ela sobrevive, frágil.
No trabalho de Nydia Negromonte, as oscilações entre polos inerentes ao tópico “natureza” permanecem vivas: produtividade e perecibilidade, fertilidade e envelhecimento, durabilidade e efemeridade, vida e morte. Como se dizia na Filosofia clássica, trata-se de uma relação entre substância – emblematizada nas diversas substâncias que compõem o seu universo, densas ou finas – e acidente, isto é, o que lhes advém no tempo. Nydia encontrou a integração mútua da materialidade e do conceito quando chama algumas séries de trabalhos de Lição de Coisas (2009-2013). A noção de “lição” implica que se retire, da observação da natureza, dos fenômenos e dos seres, uma moral. O gênero da fábula costumou ser, da Antiguidade até a época clássica, um suporte poético e literário de enunciação e transmissão de moralidades. A moral da história, aqui, é de uma matéria e de materiais que, na sua imanência, sabem sugerir uma moral que fala da vida como de um ciclo de crescimentos e mortes. Em termos contemporâneos, a natureza – agenciada e, como veremos, enxertada –, articula o ser e o devir, o ser e sua transformação, para, através do acidente natural – putrefação, transformação de ingredientes na produção de um produto potável ou comestível, migração diáfana entre imagens, etc. –, nos pôr em contato com a substância das coisas. Com efeito, é de uma certa memória da passagem do tempo que ela nos entretém. O conceito suscita o material que o atesta, e vice-versa.
O que seria explorar a “natureza da arte” hoje? Para responder, é preciso reiterar que os horizontes da arte se alargaram consideravelmente desde meados do século XX – sem remontarmos até 1900, ou 1860! A invenção de um amplo espectro de temáticas e possibilidades práticas transformou o conceito de matéria. Se a história da arte, desde o século XIX, nos mostra uma série de movimentos ou deslizamentos semânticos dignos de interesse – já assinalamos rapidamente o que diz respeito à ideia de “natureza” –, o conceito de matéria também evoluiu. Durante longos tempos, considerava-se por matéria da arte seus “formantes” físicos: o óleo, o pigmento, a terra, o bronze, o mármore, a tábua da xilogravura, o cobre, a tela propriamente dita, e outros. Basta abrir o Livro XXXV da História Natural, de Plínio, o Velho, que data do primeiro século de nossa era, para encontrarmos, na descrição e análise das cores e dos pigmentos naturais, dos recursos físicos e químicos da pintura romana, o amplo espectro material com o qual o artista lidava já há dois mil anos. Assim, a evocação da cor rubrica parece evocar a terra do Brasil, terra intensamente vermelha. Hoje, não é mais o uso desses recursos físicos que define o trabalho artístico. Porém, certos artistas podem decidir manter-se fiéis a eles. No caso, o fato de pintar ou esculpir significa eleger uma família de gestos e de procedimentos, sem pretensão de serem mais legítimos que outros. Pintar ou esculpir é apenas uma maneira de fazer arte; não é mais, apesar da longa tradição que essas maneiras carregam consigo, seu emblema privilegiado. Uma modificação importante afeta o termo “matéria”: fala-se hoje muito mais em “material” da arte, em “material” do artista. Se essa palavra integrou a nomenclatura, é porque a “matéria” era demasiadamente associada aos processos tradicionais de criação da imagem. No fim dos anos 1960, a introdução do termo “imaterial” veio confirmar a tendência em relativizar o imperativo da “materialidade” na arte. Mais de vinte anos mais tarde, uma historiadora tinha plena legitimidade para intitular um livro extenso sobre a questão: História material e imaterial da arte moderna . O “material” é a nova “matéria” dos contemporâneos. É nessa perspectiva crítica que podemos avaliar o trabalho de Nydia Negromonte.
Materiais
Nydia transita entre “matéria” e “material”. Torna emblemática a sua integração mútua. Quando seguimos os passos de seu trabalho, encontramos modalidades muito diversificadas. Envolvem materialidades, formas e proposições plásticas plurais. Não mencionaremos os trabalhos de maneira cronológica, porque os “vais-e-vens” não o permitem. A estrutura labiríntica de um trabalho iniciado nos anos 1990 exige que se adote uma abordagem mais temática ou por “ar de família”.
Um primeiro desafio é pensar a presença equilibrada de um material levemente mais confidencial, que envolve uma prática da imagem e de um material mais conhecido, o qual inclui uma dimensão social e relacional. Nos anos 2000, vários trabalhos configuram a identidade do primeiro. Poda, Pulmo, Acróstico, Almacén, etc. afirmam claramente os valores matéricos, tratando-se, segundo a lógica moderna que pensa a arte como revelação de fenômenos invisíveis, de mostrar certos comportamentos sutis da matéria. Entende-se por “matéria fina” os processos de superposição, moldagem, aprisionamento do ar, que investem todos nas interfaces e finuras das relações entre superfície e avesso de papel de seda ou de arroz. Geram finas peles opacas e translúcidas, estigmatizadas pela presença, na sua fina espessura, de objetos ou desenhos. A dimensão sensitiva dessas folhas monocromáticas leva o observador a desejar tocar, e não apenas olhar. Duas formas de ateliê coabitam, portanto: o mais tradicional, onde se elaboram as criações com gravura, foto, impressão, papel, etc.; e aquele a céu aberto, efêmero, das ações interativas. Mas como toda boa dialética demanda um terceiro termo, podemos considerar que o “material confidencial” das imagens e o “material social” das ações transitam entre si, encontrando como integrar-se numa estética material da memória que sustenta fisicamente a imaterialidade da reflexão.
Nydia pode ser entendida como um membro tropical de uma família de artistas, chamados de “relacionais”, que a cena contemporânea projetou a partir de reflexões muito difundidas no fim dos anos 1990 pelo crítico francês Nicolas Bourriaud. Além das diferenças entre artistas, notamos, nessas práticas, um forte apelo ao público, a transformação da arte em solicitação à participação do mesmo, uma tentativa de diluição da autoria – mas não exatamente da autoridade da proposição –, uma busca de compartilhamento. Diz respeito à Casa das Vitaminas, no Parque Farroupilha em Porto Alegre (2011), ou na exposição coletiva Fiat Mostra Brasil, no subsolo do Pavilhão da Bienal, em São Paulo (2006). Em volta de uma mesa, o público se “apropria” de um dispositivo que permite fazer sucos e vitaminas, numa alegoria da arte que alimenta. Como diz a Nydia, “o alimento e a água são geradores de energia”. Como será que a arte nutre? Sugerindo ao público a possibilidade de participar dela e de pensar através dela. As ações relacionais de Nydia sabem investir na área de incerteza na qual ninguém sabe exatamente quem é quem ou, pelo menos, todos fingem perder-se na identidade do outro: o espectador na do artista, e o artista na do espectador. Uma espécie de isonomia estética compartilhada entre o antigo produtor e o antigo receptor – em Casa das Vitaminas, a Nydia não age, ela observa – sustenta o que pode ser considerado como um exercício de remanejamento dos papéis e de invenção de condições virgens para a experimentação da arte. Mas sejamos objetivos: os Domingos da Criação, instituídos por Frederico Morais em 1971 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, não estão longe; sua sombra tutelar exerce forte atração, mesmo que eventualmente inconsciente. Como todos os processos físicos e naturais presentes no trabalho da Nydia, a porosidade cultural e vários tipos de capilaridade simbólica podem tecer relações subterrâneas e inconscientes. O fantasma de um Frederico Morais, agenciador institucional de momentos marcados de criatividade dominical, há mais de quarenta anos, me parece pairar acima de todo tipo de contexto artístico brasileiro no qual se convida o público a uma ação chamada, desde então, de “participativa”. Nydia investe numa veia que se mostrou criticamente potente nos anos 1970, quando Roberto Pontual escreveu a respeito desses Domingos, que “o artista é o autor de uma estrutura inicial, mas que seu viver ou desabrochar vai depender do nível de participação do público ou do próprio artista. Nessa nova situação, arte atividade, é cada vez menor a distância entre o artista e o público. No fazer criador, todos se confundem” . Então, invenção ou reinvenção? Os dois. A época que se autodenominou “pós-moderna” fez da “releitura” uma tática cultural. Aos olhos de um crítico, é evidente que Nydia “revisita” os fundamentos de uma arte “participativa”, cujos primórdios brasileiros remontam aos anos 1960. Mas a renovação, hoje, de um ideal similar significa que existe uma demanda social e que o artista jamais se considera capaz de agregar valor mágico ao seu trabalho.
Um fator integrador interessante dessas ações é sua dimensão sensorial. Por quê? Além do manuseio das frutas, da água, dos ingredientes, o fato de ser matéria natural enfatiza o toque, o sentido gustativo e o olfato, as mãos que fazem e pegam, os olhos que se divertem. Não se trata de transformar alguma “natureza morta” em cozinha viva; trata-se de gerar algum prazer, em uma síntese dos sentidos evocados. E o prazer, sabemos, é – ou foi – considerado pela Estética filosófica, nas suas origens históricas, como o motor da experiência estética. Aqui, o dispositivo das vitaminas torna quase literal o elemento do prazer, sem o qual, como se pensava no passado, a arte não surtiria efeito. Na verdade, independentemente da qualidade estética da instalação, o coeficiente sensorial pode ser considerado como uma tática de repoetização da experiência artística. Os mestres da filosofia moderna da arte, em geral os de obediência marxista, negaram à arte o direito de trazer alívio social, satisfação ou reconciliação com a realidade. Frente a Casa das Vitaminas, poderiam criticar-lhe a faculdade de divertimento. Entretanto, é legítimo que continuemos a nos perguntar se a arte deve reconciliar ou suspender criticamente a empatia com o mundo. Nydia Negromonte vai do lado da alegria. Alegria compartilhada.
Águas
Instalações como Hídrica: Episódios, na 30ª Bienal de São Paulo, ou Lição de Coisas, no Museu de Arte da Pampulha (2012), em Belo Horizonte, complexificam os dispositivos instalados. A coabitação de circuitos aquáticos (bacias, torneiras, tubulações) e de mesas apresentando frutas presas numa camada de argila seca (ou sacos de alfaces cuja embalagem transparente enuncia considerações sobre o produto) cria um conjunto de difícil interpretação. É a água. Nydia lhe dá um sentido mais político do que propriamente plástico. Aliás, de que se trataria, se preferíssemos falar em plasticidade da água? A respeito de Hídrica: Episódios, a artista fala de um jogo entre esfera pública e esfera privada, da apropriação privada de um bem público. Porém, a água, sabemos, é um elemento plástico, também. Ela faz e age: molda, envolve, irriga, banha, limpa, flutua, penetra, umidifica, circula, estagna, paira nas nuvens, devolve cor, atravessa as fibras e a terra, inunda, leva consigo, dissolve, destrói. Depois de Plínio, recomendamos reler o cientista e filósofo Gaston Bachelard, escrevendo dois mil anos mais tarde sobre “a imaginação e a matéria” na introdução de A água e os sonhos: “na sua profundidade, o ser humano tem o destino da água que escorre. A água é o verdadeiro elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a terra. O ser fadado à água é um ser na vertigem” . Nesse sentido, mais do que de relações entre o privado e o público, como Nydia diz acerca de sua instalação no Museu da Pampulha, eu veria, nos circuitos hídricos e nas suas extensões nas matérias putrificáveis, uma maneira de solicitação que, ao se querer envolver o público “politicamente”, reataria na verdade com uma certa ideia ética da arte. Para fazer “politica” em arte, não é preciso sempre usar o que tem de ecologicamente exposto. Mas, já que se trata de um elemento natural, é preciso entender suas relações profundas com o imaginário poético em geral. Intervir, para reassumi-los, os valores de imaginário material – e formal –, num contexto artístico que os relegou numa certa margem, define uma ética. Como afirma o Bachelard atento aos sonhos materiais e às paisagens oníricas que constroem emoções estéticas, cada elemento é portador de um tipo de sonho, ele mesmo portador de uma paixão e de um ideal.
No início dos anos 2010, a poética de Nydia Negromonte acontece, como vimos, sob o signo da Lição de Coisas. Coisas da natureza e da vida. Desde o Cinquecento, a arte foi pensada pelos artistas como uma maneira de se medir com a natureza, ao mesmo tempo em que a contemplavam. Hoje, não se pergunta mais se a arte é superior ou não à natureza – entretanto, as relações entre ambas poderiam bem fazer sentido como “enxerto”. É assim que Bachelard define o trabalho da imaginação. Só o enxerto, afirma ele, “pode propiciar verdadeiramente à imaginação material a exuberância das formas” . O elemento mais potente desses enxertos são, por exemplo, as frutas moldadas de terracota. O Palácio das Artes de Belo Horizonte apresentou-as de maneira programática alguns meses depois da Bienal. Fendas e rasgaduras tinham-se aberto na espessura dos invólucros. As próprias frutas continuaram às vezes a crescer, projetando para fora extensões orgânicas. Aqui, a natureza revela-se fértil ou morta. Vida e morte. Sempre. Morte e transfiguração. Mas o que faz o ciclo biológico, real e metafórico, concretizado nas frutas ou nos vegetais recobertos de argila e ressoando num nível suprassensorial? Apontam de maneira alegórica para o trabalho da metamorfose e da memória.
Memória, sempre
Os vinte módulos de Lição de Coisas me parecem emblemáticos da poética da memória em Nydia. Apresentam fotografias do arquivo familiar da artista e seu “duplo” fantasmático acoplado na forma de uma gravura a laser, assemelhando-se à primeira. Os gestos e as situações cotidianas se prolongam no baixo relevo da gravura que, como uma película marmórea, estigmatiza-lhes as silhuetas. Apresentados também na instalação da 30ª Bienal de São Paulo, ao lado da mesa de frutas engessadas no barro, esses módulos binários constituem uma ótima ilustração da ambivalência e da complexidade das imagens: evidentes e escondidas, claras e secretas, discerníveis e indiscerníveis, presentes e retiradas no seu enigma, corpo e silhueta, agora-do-ontem e aqui-do-lá… Uma “lição de coisa” é também uma lição sobre o tempo. A tenuidade visual gerada pelo laser funciona como a alegoria de um cuidado com o tempo. Cuidado da observação, cuidado da sugestão da imagem-fantasma. Fazer da imagem um espaço e um tempo para fazer sobreviver outros espaços e outros tempos, como agora é moda dizer, continua definindo a verdadeira arte da memória. Um folder disponível durante a exposição de 2012 na Pampulha justifica, na página 7, as fotografias de azulejos: “Azulejo antigo oriundo de demolição no bairro Santo Agostinho. Azulejo retirado de demolição de casa construída por Niemeyer com sobras de azulejos da construção da Casa do Baile, Museu de Arte da Pampulha (antigo cassino) e do Iate Clube, também na orla da Lagoa da Pampulha. 15 peças ‘únicas’”. Aqui, o azulejo, que mescla fogo e terra, é levado dentro de uma série tradicional de conceitos que sustentam as habituais estéticas da memória. Nem é preciso insistir em analisar-lhes o sentido. Faz parte da tipologia da memória recorrer ao vestígio, ao destroço significativo, que vira relíquia – e fetiche –, porque os valores de antiguidade e de historicidade são as matrizes de toda preocupação patrimonial. Na verdade, o artista que explora a veia da memória é fadado à repetição. Não se escapa à memória. E a memória implica também algumas repetições semiológicas e visuais. As Lições de Coisas funcionam por pares. As imagens da intervenção na casa de uma rua de Belo Horizonte também. Jasmim do Cabo (2010) mostra a ação do esquecimento numa casa que deixou de ser habitada. Constitui um gesto parecido com o do arqueólogo que residiu quase três terços de século na casa, que levou Nydia a selecionar fotografias no arquivo da família. Impressas em papel adesivo, são afixadas sobre a parede. Repetições semiológicas da memória, mas também mergulho nos mecanismos de referência que as imagens apresentam desde que são imagens. Quando a fotografia mostra objetos que existem ainda na casa, a cadeira em questão aparece viva ao lado. Se a fotografia mostra e ocasiona o “reaparecimento” desses objetos em desuso, as placas de argila, aplicadas no mesmo formato ao lado, propiciam um “ressurgimento” ainda mais impactante: ao cair progressivamente, revelam as diversas camadas de pintura acumuladas na parede. Gravura e fotografia, unidas no processo de “revelação”, mostram aqui como são centrais nas práticas memoriais. Elas sinalizam, na relação presente com o passado, certas categorias fundamentais da Psicologia: quando alguém se lembra, gera reimpressões, condensações, superposições, associações; repassa nos rastros mnésicos, como Freud disse, os marcos cérebro-afetivos da experiência. Riqueza própria à ambivalência originária do “material”, com fortes conotações matéricas, para projetar um certo prazer da perda. É necessário algo ou alguém morrer para que o escavador possa satisfazer sua pulsão arqueológica. A arte tende, demasiadamente, às vezes, a servir o elogio do puro presente, a se esquecer da relação que ela mantinha com a morte quando ela era regida pelo conceito de “representação”. É porque existe ausência que a presença da imagem adquire significação. É porque existe presença que a ausência é o negativo constitutivo da imagem. As bodas do negativo e do positivo, ou, melhor dito, da presença e da ausência, geram um prazer específico. E não é porque ele se determina com relação à perda que é menos prazeroso. Já disse que Nydia escolheu a alegria.
Vegetação da arte? Se a criação artística nunca pode ignorar de onde vem e em que terreno já pré-balizado ela evolui; se hoje a ideia de “natureza” faz convergir vários tipos de entendimento – da natureza-modelo da arte antiga à natureza ameaçada do ambiente contemporâneo, passando pela natureza do sistema artístico, ao qual nenhum artista escapa; se, enfim, toda obra, toda trajetória, toda imagem nunca deixa de ser a árvore que esconde a ampla e imemorial floresta da arte, podemos usar, sim, uma metáfora vegetal. Concluamos com uma imagem alegórica: o espectador que se refresca debaixo da queda d’água que atravessa a parede vidrácea do pavilhão da Bienal é, de certa maneira, coroado pelos estilhaços líquidos da arte. Queira ou não, o amplo complexo constituído pela natureza artística, ao mesmo tempo terrestre e artificial – uma vegetação prolixa e proteiforme –, não pode ser empacotado. Vaza, difrata-se. Suas peles transpiram sentidos e sentido, encobrem processos que agem de dentro para fora, segundo o tempo. De certa maneira, a dimensão ativ(ist)a que encontramos em Nydia coabita perfeitamente com os processos mais confidenciais: trata-se de levar para a praça pública, através de uma transformação de escala e ingredientes, a energia e a sensibilidade contidas em suas finas materialidades. Trata-se de duas escalas diferenciadas de um mesmo processo de envolvimento sensível e suprassensorial. Nessa ordem de razão, uma “vitamina” é um processo mnemotécnico para garantir a sobrevida da energia artística. A chuva das metáforas cai sobre nós. Resta a cada um aceitá-las ou não.