Lección de Cosas
Se, na arte contemporânea peruana, a memória tende a ser tematizada a partir do documento, como referência fielmente respeitada, pode-se dizer que a arte brasileira contemporânea aceita que, na narrativa da memória, a fidelidade a referências externas seja traída, se é que é para ser trazida ao presente como uma força vital. Isso permite propor a unificação da experiência cotidiana com o que têm de irracional as fantasias e projeções pessoais. E isso definitivamente faz com que a ênfase não seja colocada no documento como tal, mas sim na resposta sensorial do indivíduo e, assim, a percepção se alimenta diretamente do contato com a matéria. Essa abordagem envolve aceitar a possibilidade de que a memória seja radicalmente reinterpretada com a consequente renúncia à fidelidade.
Na investigação da sensorialidade, o valor que o artista brasileiro tende a cultivar é o háptico, o que envolve o tato, o sentido que registra experiências que se vivem no que se refere ao corpo, no contato físico com outros corpos, inertes ou vivos, e que têm a ver com peso, pressão, posição e textura. Não se quer dizer com isso que se descuide do visual. Exatamente ao contrário, se busca estabelecer uma experiência integral da pessoa para gerar uma combinação entre o que os olhos veem e o que se percebe com o corpo, para despertar intensidades que desafiam constantemente a razão com métodos que são, por vezes, simples e complexos, livres, porém ligados a poéticas rigorosas e, certamente, muito pouco ortodoxas, nada convencionais.
Esta exposição de obras selecionadas de Nydia Negromonte, artista brasileira nascida no Peru, é um exemplo da importância de se evocar o real como raiz a partir da dupla experiência do visual e do tátil. Nos trabalhos de Negromonte, o pensamento segue aliado aos processos de tocar para se penetrar no campo dos significados ocultos, porém nada esotéricos, que a memória confere às coisas, mas também para expandir o âmbito pessoal a partir da realização do colaborativo caso concreto da obra feita durante uma oficina ocorrida na Sala Miró Quesada como parte de uma dinâmica prévia da exposição. O que surpreende na obra de Negromonte é que os fundamentos são precisos em sua capacidade de comunicar a experiência de base que provém do lugar em que habitamos ou, inclusive, daquele em que estamos temporariamente. Não é simplesmente uma questão de afeto doméstico, mas de ímpeto e de tensões que não conhecemos e nunca terminamos de conhecer, e que vinculam para sempre lugares e espaços a respostas que são inesquecíveis e irrevogáveis para nós no âmbito emocional, por mais que a ativação dos sentidos tenha sido efêmera e passageira.
A temporalidade é um fator crucial nas obras de Nydia Negromonte. A artista sugere que se deve permitir ao tempo fazer sua parte. Nesse sentido, o crescimento e a pujança da vida que rompe através dos encapsulamentos de argila que envolvem legumes e frutas nos confrontam com uma dimensão onde ocorrem processos dos quais não carregamos registros (ou que identificamos somente com a finalidade de descartar a matéria em transformação). Assim, é poderoso – e frágil – o processo de recordação, se você prestar atenção e cultivá-lo.
Essa plasticidade, poeticamente carregada pela artista, estabelece uma via de referencialidade indireta que coloca em evidência o tecido experimental que sustenta a integridade da pessoa humana. Construída desde uma honestidade material básica e precisa, desperta a consciência ao extraordinário de ser e estar em um plano do que tomamos por comum e corrente.