“É só chegar”: Casa das Vitaminas

Em maio de 2011, Nydia Negromonte veio a Porto Alegre para participar de três atividades: a apresentação da exposição LIÇÃO DE COISAS; a condução de um workshop e a realização da terceira edição de uma ação pública intitulada CASA DAS VITAMINAS .

Esta última encerraria a passagem de Nydia pela cidade e gerava grande expectativa em todos os envolvidos em sua organização.

Meses antes, eu retornava de Belo Horizonte tomada de entusiasmo pelo trabalho que Nydia contou ter realizado em Belo Horizonte e São Paulo.

De volta a Porto Alegre, ganhei a adesão imediata de Ana Flávia Baldisserotto e Melissa Fávero para organizar uma vinda de Nydia à cidade que possibilitasse a realização de CASA DAS VITAMINAS.

O sábado esperado chegou. A manhã estava ensolarada e a temperatura, agradável.

Nossa equipe reuniu-se na Galeria Ecarta e, dali, cruzamos a avenida em direção ao Parque da Redenção, onde a estrutura seria montada.

Tratava-se de um conjunto de três mesas em madeira que seriam montadas com as cabeceiras em convergência, formando o desenho de uma hélice de três pás, se vistas do alto. O centro da hélice seria atravessado por um sólido tripé, também em madeira, que se elevaria por cerca de três metros para sustentar uma caixa d’água com as palavras CASA DAS VITAMINAS estampadas nela.

O marceneiro responsável pela construção da caixa d’água e das mesas já havia chegado e se apressava em corrigir desníveis no terreno onde a estrutura seria instalada.

Enquanto descarregavam os equipamentos, um funcionário do parque tratava de ativar o registro que abasteceria a caixa com água.

Avistamos Nydia, que vinha caminhando desde o hotel e nos acenava da esquina. Ela aparentava uma tranquilidade admirável, considerando que a estrutura que estávamos prestes a por em funcionamento dependia de uma série de fatores sobre os quais não tínhamos controle. Afinal, estávamos na rua.

Durante vários momentos da organização, receei que o trabalho pudesse não acontecer.

Desabrigada do contexto de um evento formal e totalmente solta em praça pública, a CASA DAS VITAMINAS dependia do engajamento dos que se solidarizavam com sua realização.

Reunimos forças e a coisa saiu. Estava lá e começava a erguer-se do chão.

O grande tripé de madeira seria encimado por uma caixa d’água com capacidade para trezentos e dez litros. Sobre esse aspecto, até mesmo nosso experiente marceneiro revelava ansiedade, confessando ter passado a noite revolvendo-se em um pesadelo no qual se via agarrado à torre de sustentação da caixa d’água, prestes a desabar sobre o público.

– Deve ser efeito da tensão provocada pelos prazos – disse eu, para tranquilizá-lo. Contudo, a imagem do pobre homem agarrado à torre ficaria impressa em minha memória até ter certeza de que a estrutura estava firme.

A caixa d’água finalmente subiu a seu posto e foi conectada à mangueira.

As mesas já conformavam a grande hélice, envolvendo os pés da torre. Os tampos foram ajustados e, sob eles, foram instaladas prateleiras. A caixa d’água começou a ser enchida.

– Leva uma hora – preveniu Nydia, com a mesma tranquilidade da chegada.

Enquanto a caixa era abastecida, retiramos as frutas das sacolas e Nydia começou a acomodá-las sobre as mesas, em formato de pirâmide. Enquanto isso, contava:

– No começo, eu achava que tinha que ter muita laranja para produzir líquido suficiente, mas hoje sei que não é necessário.

Sobre as superfícies brancas, distribuíam-se o alaranjado das bergamotas, caquis e laranjas; o verde das folhas de manjericão; o vermelho dos tomates e maçãs; o amarelo das carambolas e bananas; o rosado das mangas, uvas e romãs.

Cada mesa foi equipada com um liquidificador manual para triturar as frutas, um tanque para lavar os utensílios e uma bacia localizada sob a saída de cada tanque para capturar a água usada na lavagem. Nas prateleiras, estocavam-se frutas para reposição.

A caixa d’água estava cheia. A mangueira foi desconectada. O marceneiro se despediu, confiante em seu trabalho.

Estava tudo pronto.

Algumas pessoas, que haviam observado o processo de longe, agora a se aproximavam. Meu pensamento girava em interrogações.

“Será que os passantes se sentirão à vontade para fazer suco na rua?”

“Quem vai querer beber suco com esse friozinho?”

“E se as pessoas não se interessarem por nada disso?”

Olhei para Nydia que conversava animada com os visitantes e decidi dar uma volta. Ao retornar, encontrei um grande e barulhento grupo em torno das mesas.

Eufórica, Ana Flávia Baldisserotto trouxe as novas:

– Não sei bem como aconteceu, mas depois do primeiro grupo, não parou mais de chegar gente!

Discerni Nydia, que agora vestia um avental, no meio da turba:

– É só escolher as frutas. Aqui está o liquidificador, funciona a mão – e, virando-se para outro lado: – Não, não precisa de água… e também não tem que pagar nada. Olha: tem mexerica, tem banana, cada um inventa o seu suco!

As pessoas escolhiam as frutas, animadas pelo exemplo de um participante que triturava o que via pela frente e oferecia o resultado aos que estavam por perto.

Um pai girava a manivela com o filho; um rapaz descascava e cortava frutas; mulheres passavam um paninho sobre a mesa; jovens separavam os copos plásticos das cascas de fruta, organizando o lixo.

De vez em quando, se ouvia a voz de Nydia:

– Sou artista plástica, isso é um trabalho artístico… Para que serve? Para isso, mesmo: inventar suco na praça, sem adição de água, todo mundo junto. É livre. É só chegar.

A certa altura, creio que correu pelo parque a notícia da banquinha de fazer sucos. As pessoas chegavam e colocavam a mão na massa sem fazer perguntas.

Eu me admirava ao ver meus conterrâneos, normalmente mais reservados, agirem de forma tão desembaraçada e falante, inventando e distribuindo copos de suco entre si.

Das onze horas da manhã às cinco da tarde, a CASA DAS VITAMINAS funcionou sem parar no Parque Farroupilha. Reuniu um mutirão de desconhecidos que trabalhavam em inacreditável harmonia.

A certa altura, Nydia saiu para um café e nos sentamos a distância para contemplar a usina, girando suas hélices.

Houve gente que interrompeu a sua corrida matinal para tomar suco; gente que encostou a bicicleta; gente que apareceu com o filho e o cachorro; gente que saiu da feira com sacolas; gente que veio do emprego noturno.

Havia o menino de rua e o de casa; o homem desgarrado e a moça com as amigas; o gaúcho com chimarrão e o fumante. Pessoas de todas as idades e classes sociais se revezavam nas tarefas de descascar, cortar, triturar, distribuir, limpar e beber. Era uma colmeia de trabalho, alegria e deleite. A máquina girava sem parar, movida pelos grupos que se alternavam e se autogerenciavam; os que chegavam eram instruídos pelos que já estavam: “cada um faz o seu suco”; “não precisa colocar água”; “o liquidificador funciona a mão” e assim por diante.

De nosso posto, observávamos as pessoas servirem-se de suco, conversarem, cumprimentarem-se a cada chegada ou saída. Uma ordem calma e horizontal fazia com que as etapas de produção, consumo, descarte e limpeza se sucedessem com naturalidade e a coordenação da mesa fosse passada de um grupo a outro. Era uma micro-sociedade que se autorregulava. De vez em quando, havia algum debate sobre o uso da água, a separação do lixo ou se as frutas poderiam ser comidas, ao invés de processadas. E o consenso prevalecia.

O nome CASA DAS VITAMINAS reluzia no alto da caixa d’água como uma bandeira alegre, convocando os sedentos. A produção de sucos ondulava entre picos de intensidade e momentos de quase repouso, sem jamais cessar. O nível da água baixava aos poucos.

– A água é só para lavar as mãos e os utensílios – orientava Nydia, de volta – precisamos cuidar da água porque, quando ela acabar, o resto todo acaba junto.

A certa altura, avistei a bicicleta de Marcos Sari, artista plástico e amigo de anos, que chegou, contando ter sido atraído pelo movimento em volta das mesas:

– Olhei de longe e pensei: “aquilo lá deve ser coisa de artista!”.

Rimos.

Quando Marcos se afastou, perguntei-me o que teria sugerido a ele a ideia de um trabalho artístico.

Certamente, o olho treinado e a familiaridade com a arte pública permitiram que Marcos lesse alguns sinais não tão evidentes aos passantes, de modo geral. Além disso, Marcos Sari também é educador e tem atuado em propostas que buscam deslocar a ação pedagógica para além das salas de aula e das oficinas de arte, levando-as para situações cotidianas frequentadas por todo o tipo de pessoas – estudantes e não estudantes, velhos e moços, homens e mulheres, profissionais e amadores de várias áreas.

CASA DAS VITAMINAS foi planejada com zelo, de forma que seu funcionamento não induzisse o participante a uma leitura preconcebida, nem a modulasse em direção unívoca. Posso testemunhar que este cuidado foi levado a cabo com êxito, contribuindo para o frescor do trabalho de Nydia Negromonte.

Os passantes que moveram a usina de sucos, naquela tarde, compartilharam um ritual de sociabilidade construído em conjunto; produziram e coordenaram o trabalho, o consumo, a organização e a festa; experimentaram a gratuidade de uma situação que se produziu sem envolver comércio, propriedade, cargos ou instituições.

O movimento das hélices celebrava uma sociedade de passantes, na qual as identidades sociais foram momentaneamente suspensas e o automatismo cotidiano cedeu espaço para a invenção de uma realidade na qual o saber e o não saber eram igualmente imprescindíveis.

***

A tarde terminava. Restavam poucas pessoas em torno da hélice.

Em Belo Horizonte, eu ouvira de Marcelo Drummond a seguinte observação:

– CASA DAS VITAMINAS é movida pela energia das pessoas, da água e das frutas. Quando uma delas acaba, o sistema entra em falência.

O colapso da CASA DAS VITAMINAS se anunciava aos poucos.

A água das bacias alcançava as bordas. Acabara o estoque de fruta das prateleiras. Os cestos de lixo estavam abarrotados. O público diminuía na proporção em que as pirâmides de fruta desapareciam das mesas. A água minguava nas torneiras.

A usina parou.

As hélices foram desmontadas.

Um caminhãozinho da administração do parque veio recolher o material. Conservamos os utensílios e a caixa d’água. As peças de marcenaria e as frutas restantes foram levadas pelos funcionários.

Assim como se havia materializado de uma hora para outra, a CASA DAS VITAMINAS desapareceu sem deixar rastro.

Escrito por Maria Helena Bernardes Em 2010