Jasmim do Cabo
Um médico vivia com sua extensa família em uma ampla casa dos anos 40. Certa vez, ao salvar a vida de um paciente, recebeu em agradecimento uma muda da flor denominada Jasmim do Cabo. A partir daí, tomou como hábito fazer mudas desta planta que agora habitava seu jardim, para presentear amigos e familiares. Não bastasse isso, após o nascimento de cada filho, enterrava seus umbigos aos pés dessa planta. Ainda hoje, todos os seus filhos e a grande maioria dos seus parentes cultivam o hábito de manter um pé de Jasmim do Cabo em suas casas.
(Nydia Negromonte, sobre o trabalho Jasmim do Cabo)
Julho de 2011
Chegamos à Rua Padre Belchior, número 280, coração de Belo Horizonte, no final da manhã. Thereza Portes nos aguardava com um café passado na cozinha da casa onde mantém o Instituto Undió. Com seu sorriso doce, contou brevemente sobre a experiência que desenvolve como educadora e artista, dirigida a meninos e meninas que vivem pelo centro da cidade. Não se estendeu para além do café, prometendo seguir a conversa depois de visitarmos a casa ao lado, onde estava abrigado o trabalho de Nydia, uma intervenção chamada Jasmim do Cabo.
Descemos por uma pequena escadaria e cruzamos um pátio comum às duas casas. Thereza abriu a porta, prevenindo-nos de que não haveria eletricidade. Na primeira peça, nossos olhos venceram a penumbra para descobrir alguns objetos apoiados uns contra os outros ou encostados às paredes. Thereza preveniu que faríamos o mesmo percurso que Nydia fez ao conhecer o local.
– Ela não fazia perguntas. Olhava tudo calada, bem concentrada, sabe? Mas eu ia falando por mim mesma, pois tem muita história nessa casa, tanta coisa envolvida no passado, no presente… Parte dos herdeiros quer vender a casa. Se isso acontecer, ela vai ser demolida como as outras da rua. O trabalho de Nydia fez as pessoas olharem para a casa de novo. Até os mais resistentes da família se emocionaram.
Passamos para um quarto mais claro que o primeiro e subimos a escadaria que levava ao segundo piso. Lá em cima, os quartos eram iluminados e estavam vazios com exceção de um ou outro objeto absorvido pelo trabalho de Nydia.
– Quando Nydia conversou comigo sobre o trabalho, senti um arrepio. Fazia mais de vinte anos que ninguém usava essa casa! Voltar a folhear os álbuns e rever as fotografias de que ela necessitava foi uma experiência que mexeu muito com todos nós. Mas Nydia não perguntava nada, não queria nenhuma informação.
Nydia interveio:
– Eu trabalho só com a imagem e o lugar, sabe? Prefiro não saber nada da história da casa e das pessoas. Fico no presente. Meu trabalho é de justapor matéria, imagem e lugar, deixando que os sentidos se produzam a partir do trabalho instalado no espaço.
– E tu não tens curiosidade pelo que aconteceu aqui? – perguntei.
– É delicado realizar um trabalho em um contexto tão denso. Você tem que se restringir ao que está diante de você. A arqueologia fica por conta da passagem do tempo e das variações de umidade no interior da casa, depois que o trabalho estiver pronto. Faço uma sequência de operações: seleciono fotografias, amplio-as em formato A4, colo-as às paredes e, ao lado delas, assento placas úmidas de argila cortadas no mesmo formato. Se na casa restar algum objeto, talvez venha a incluí-lo. O mesmo vale para notas e documentos de família. Seleciono, amplio, colo as cópias e aplico a argila.
Pergunto sobre a arqueologia da qual ela falava há pouco.
– Foi algo que descobri fazendo o trabalho – contou empolgada. – A água presente na argila evapora mais ou menos rápido, dependendo se a peça é mais seca ou úmida, se entra sol e se corre ar. Essa placa, aqui, por exemplo, está praticamente intacta; aquela já começa a levantar as bordas; a que está na outra peça caiu inteirinha, arrancando uma camada da parede com ela.
Aproximamo-nos. A queda completa da placa produzira outro documento, segundo Nydia, transformando brutalmente o díptico que a argila compunha com a fotografia.
– Às vezes, a escavação chega a expor o reboco – observou Nydia.
No início da visita, fiquei surpresa com a determinação de Nydia de não tomar a iniciativa de investigar as histórias da casa. Por que resistir ao passado se o trabalho tratava do tempo?
Depois da visita, contudo, convenci-me de que não teria compreendido Jasmim do Cabo se não tivesse vivido a experiência de estar no espaço parcimoniosamente pontuado pelas intervenções de Nydia. Ouvindo-a conversar com Thereza, ambas surpresas diante de um pedaço de reboco recém caído, ou com a revelação de uma camada de tinta que não estava visível há três meses ou, ainda, pelo fato de o vento ter derrubado uma fotografia no chão, compreendi que a emoção suscitada pelo trabalho se deve menos aos eventos e personagens que as fotos recolocam em seus lugares e mais à experiência de um tempo que o trabalho inaugura e produz naquele vazio.
*
No avião de volta para Porto Alegre, rememorava o relato de Thereza Portes sobre a abertura de Jasmim do Cabo ao público. Imaginei as pessoas entrando pela sala dos objetos empoeirados e subindo os degraus que levam ao segundo andar, parando brevemente no meio do caminho para ler um bilhete escrito em 1945 em letra infantil:
Notícias de casa
Tio Murilo está no Rio.
A Carmo está estudando.
O Feli está na aula.
A tia Alice está passando roupa.
Eu estou fazendo jornal.
O Geraldo não chegou.
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Notícias do mar
Navio naufragou nas costas [sic] da África.
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Notícias da terra
A mamãe chegou de Pará de Minas.
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Notícias da semana
O povo está querendo é o Brigadeiro.
Familiares que há tempo não se falavam, tinham os olhos marejados. Visitantes estranhos à casa apreciavam a visita como como se estivessem no museu. Mas todos, em algum momento, estremeceriam com um arrepio que lhes percorria o braço e saía pela ponta dos dedos.
Crianças se divertiam em pequenas corridas pelos quartos amplos, uns atrás dos outros, entrando por uma porta e saindo pela outra.
(Crianças adoram o vazio).
Quando todos foram embora, a porta se fechou e a penumbra se acomodou pela casa por outros vinte anos, quem sabe.
Um novo capítulo da vida da casa acabava de começar.
Jasmim do Cabo.
Outras vozes
1.
Na casa esquecida, Nydia passeia.
Nada pergunta, nada fala, apenas observa.
Por fim, pergunta por fotos, registros de outras épocas. Existiriam?
– Caixas com cartas, bilhetes, retratos antigos estão guardados entre as coisas de uma velha senhora – respondo.
Era esse o material de que a artista precisava para fazer seu trabalho. Seleciona fotos com seu olhar pesquisador. São registros de um tempo que já passou. A poeira das paredes é retirada com panos úmidos e ali são colados os retratos, agora ampliados e bem vivos. Ao lado de cada foto, um bloco de argila úmida é assentado, batido e fixado sobre as antigas paredes. E os ambientes vazios vão se modificando. Os quartos, as salas, a escada: tudo parece ter um novo significado; a história da família que ali viveu está marcada. As fotos mostram pessoas felizes. Outras épocas.
Pessoas que passam pela rua vêm visitar a exposição, olham, observam, comentam:
– Como é possível que as casas desta rua tivessem jardins? É incrível!
– Como as crianças brincavam nos passeios?
– Será possível que as senhoras se sentassem à tardinha na calçada e repassavam as notícias do dia?
– Será possível que…
(Relato de Thereza Portes sobre a experiência de acolher Jardim do Cabo na casa onde viveu com sua família. Belo Horizonte, 2010)
*
2.
Walter Benjamin acreditava que o abandono de um lugar tem o poder de revelar sua verdadeira personalidade. É no intervalo entre uma ocupação humana e outra, quando a funcionalidade da arquitetura é totalmente esquecida, que a natureza de uma casa se revela plenamente. Normalmente, o trabalho do artista destina-se a deslocar as coisas de seu contexto usual para que ele, então, possa trabalhar com elas. Assim, artistas que elegem espaços abandonados como sítio de criação trabalham duplamente essa vocação, já que um espaço abandonado está deslocado da função a que foi destinado por convenção. E podemos perceber uma diferença fundamental entre os artistas norte-americanos da década de 1960-70, que agiam diretamente sobre o meio-ambiente, e os artistas brasileiros que, hoje, trabalham nesta direção. É próprio da cultura norte-americana considerar o espaço vazio como objeto de conquista e ocupação. Na land art, por exemplo, a operação artística se dava através da intervenção no ambiente, segundo modos de construção e recursos que reportavam ao espírito americano de desbravamento e conquista dos vazios. No caso dos brasileiros, a convivência com os espaços vazios ou abandonados se dá sem polarização ou antagonismo, é muito mais tolerante. O que nossos artistas fazem com estes locais? Dão voz ao vazio, àquela situação específica onde o tempo passa silenciosamente, provocando alterações lentas que se somam sem outra interferência além da própria condição de abandono. É este momento não testemunhado da história de um lugar, espécie de intervalo não relatado, não vivido nas vidas comuns, é justamente esse intervalo fora do tempo ao qual ninguém presta atenção que vem mobilizando a sensibilidade dos nossos artistas. Escreve-se e lê-se muito a respeito da construção das edificações, dos incidentes ocorridos durante o período de sua ocupação. Lê-se e escreve-se sobre a data em que as casas e prédios caíram em abandono e comemora-se o dia de sua eventual reocupação. O artista, contudo, é capaz de tornar perceptível – e, mais do que isso –, de tornar vivido o tempo passado no abandono, de tornar sensível a peculiar permanência das coisas em um tempo passado na ausência do homem. Creio que, no caso dos nossos artistas, deveríamos falar antes em convivência e observação do abandono, falar da revelação de lugares existindo à margem do tempo. A meu ver, trata-se muito mais disso do que propriamente de ocupação.
(Anotações de uma fala de Lorenzo Mammi sobre o projeto Arte Construtora Ilha da Casa da Pólvora. Porto Alegre, 1996).
*
3.
Assim, com todas as luzes apagadas, a lua escondida e uma fina chuva tamborilando no telhado, desabou um temporal de infinita escuridão. Parecia que nada sobreviveria a essa enchente, a essa profunda escuridão que, insinuando-se pelas fendas e fechaduras, esgueirando-se pelas venezianas, entrava nos quartos e engolia aqui uma bacia e um cântaro, adiante um vaso de dálias vermelhas e amarelas ou as quinas retas e a massa sólida de uma cômoda. Mas a densa penumbra não atingiria apenas a mobília. Quase nada restava de corpo ou de espírito que permitisse afirmar: “Aquele” ou “aquela”. (…) Nada mexia nas salas de jantar, de visitas e na escada. Apenas uma leve brisa, que se desprendia do próprio vento, esgueirando-se por gonzos enferrujados e entalhes encharcados de maresia (pois a casa estava em ruínas), contornava as quinas e penetrava em seu interior. Quase se podia imaginá-la entrando na sala de vistas, curiosa, inquiridora, brincando com o papel de parede em frangalhos, e perguntando: ainda resistiria muito? Quando acabaria de cair? Depois, roçando leve as paredes, passaria com um ar absorto, como se perguntasse às flores vermelhas e amarelas do papel de parede se desbotariam, e às cartas rasgadas na cesta de papéis (lentamente, pois tinha bastante tempo à sua disposição), às flores e aos livros – pois tudo agora estava a seu alcance: seriam aliados? Seriam inimigos? Por quanto tempo resistiriam?
Assim, conduzida por uma luz ao acaso, como de alguma estrela surgida no céu, de um navio à deriva, ou talvez mesmo do Farol, como seu pálido reflexo sobre os degraus e o tapete, a tênue brisa subia a escada e se intrometia pela porta dos quartos. Mas, ali chegando, era obrigada a se deter. Tudo o mais pode findar e se deter, mas o que repousava ali era imutável. E podia-se dizer a essas luzes resvaladiças e a essas lúdicas brisas que sopram e se curvam até mesmo sobre a cama: isso vocês não podem nem tocar, nem destruir. E assim, cansadas e fantasmagóricas, como se tivessem mãos ligeiras como plumas e com sua esvoaçante perseverança, observariam, uma única vez, os olhos fechados e os dedos entrelaçados, para logo depois, exaustas, recolherem suas vestes e desaparecerem. E, assim, espreitando, roçagando, iam até a janela no patamar da escada, aos quartos das empregadas e aos desvãos do sótão; descendo, descoravam maçãs na sala de jantar, afagavam as pétalas das rosas, sondavam o quadro no cavalete, roçavam o capacho e sopravam um pouco e areia no chão. Por fim, desistindo, tudo cessava a um só tempo, se recolhia, suspirava junto; tudo exalava junto uma lufada inútil de lamentação à qual respondia a porta da cozinha; abria-se para ninguém e tornava a bater com violência.
(Virgínia Woolf, O Farol. Londres, 1927)